segunda-feira, 16 de junho de 2014

Rodolfo e Raimundos: enriquecer com o errado é certo? Duas perspectivas filosóficas

Há algumas semanas atrás, o ex-vocalista do Raimundos, Rodolfo, juntamente com a sua antiga banda, os Raimundos, foram parar no centro de mais uma polêmica midiática. Em entrevista à revista Trip, Rodolfo, que há mais de uma década saiu da antiga banda e converteu-se à religião evangélica, teria dito que estaria “100% arrependido” das músicas que compôs quando fazia parte dos Raimundos. 


Até aí, nada de muito polêmico, afinal, obviamente as canções dos Raimundos não se adequam muito bem ao código moral cristão-evangélico. Todavia, a polêmica explodiu quando, em resposta à declaração de Rodolfo, os ex-companheiros de banda, Digão e Canisso, que ainda mantêm viva a banda, afirmaram que apesar do ex-vocalista estar arrependido das composições, usufruiria de 100% dos rendimentos de direitos autorais das músicas. Nos portais de notícias, Rodolfo foi chamado de hipócrita por muitos leitores.

A questão aqui, da forma que eu vejo, é: podemos dizer que é certo, ou moralmente correto, enriquecer com o que é tido como moralmente errado, ou imoral?

Há duas grandes escolas em filosofia moral que podem no auxiliar na abordagem dessa questão: kantiana e utilitarista. Na primeira, Rodolfo estaria errado, na segunda, Rodolfo poderia estar certo.

O que diz a escola Kantiana? Conhecida como a que delineia a “ética do dever”, essa linha de pensamento diz que um ato é moral se ele for capaz de ser racionalizado numa máxima sem cair em contradição. Sendo assim, um ato é moral se puder ser testado da seguinte maneira: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.

Sob a ótica da ética do dever, Rodolfo estaria errado. Retomemos a pergunta inicial da polêmica: “podemos dizer que é certo, ou moralmente correto, enriquecer com o que é moralmente errado, ou imoral”? Isso poderia se traduzir na seguinte lei universal: “é correto enriquecer com o que é moralmente incorreto”. Ora, o problema é que se todos agem dessa forma, todos irão acabar incorrendo no que é imoral e, portanto, a máxima não passa no teste. Enriquecer com o que se pensa moralmente errado é imoral, nesse pensamento. 

Todavia, há uma outra perspectiva, a do chamado utilitarismo. Diferentemente da perspectiva kantiana, no utilitarismo o que é moral não é dado a priori da ação, mas sim depende das consequências da ação. Por isso, se a ética kantiana é chamada de “ética do dever”, a utilitarista é chamada “ética consequencialista”. O raciocínio moral utilitário é o seguinte: um ato é moral quando as consequências que dele advém maximizam a felicidade (prazer, utilidade).  Torturar um terrorista para salvar mil pessoas é correto? Segundo a ética do dever, não, pois torturar é errado a priori da ação, porém, segundo a ética consequencialista do utilitarismo, é correto, pois salvar mil gera mais felicidade, e bem estar, do que não torturar esse um e deixar mil morrerem. Nesse quesito, tanto a moral Kantiana quanto o liberalismo político, ao falar de direitos básicos, travam a tortura por ela mesma. Já o utilitarismo, leva em consideração as consequências e o bem-estar do máximo de indivíduos e pode pensar a questão de outra forma.

Sob a perspectiva utilitária, a pergunta muda e Rodolfo até pode estar certo. Como não há errado e certo a priori da ação, somente pelas consequências da ação, a pergunta passa a ser: as consequências do enriquecimento através de algo que se considera errado trazem mais bem estar do que se esse algo não enriquecesse o individuo em questão? Ou, mais especificamente, pensando como Rodolfo: a minha antiga música faz mal, mas o meu enriquecimento com ela trás mais bem estar do que se eu não enriquecesse com ela, dado que com esse dinheiro, posso pregar a boa palavra e fazer o bem. Portanto, já que os Raimundos continuará tocando de qualquer forma, é mais útil, traz mais bem estar geral, que eu enriqueça com essa música e use o dinheiro para o bem cristão, para pregar, do que se eu não enriquecesse.


Portanto, no utilitarismo há essa possibilidade de Rodolfo estar fazendo a coisa certa, todavia, seria necessário adotar o utilitarismo no interior da moral cristã, o que é coisa muito complicada, dado que esse código moral se aproxima mais de deveres dados a priori do que de consequencialismo. Caso o cristianismo passasse a ser mais utilitarista, poderia-se contrariar os dez mandamentos quando isso gerar mais bem estar, por exemplo.

Além disso, para se considerar como certo que pregar a palavra traz mais bem estar geral do que as músicas do Raimundos, seria necessário adotar a perspectiva cristã. Fora do cristianismo, há quem fosse defender que a música dos Raimundos trás mais felicidade que o trabalho de Rodolfo na igreja, algo de difícil averiguação. Defender Rodolfo não é tarefa fácil.

Sendo assim, caso Rodolfo tivesse inventado o cigarro, mas se converte-se ao movimento anti-tabagista, porém continuando a receber royalties da invenção do cigarro, há quem o condene por isso, pela contradição de enriquecer pelo que se acha moralmente errada, e há quem diga que Rodolfo poderia estar correto contanto que o uso que ele faça do enriquecimento no seu trabalho antitabagismo maximize a felicidade. Esses são os kantianos e utilitaristas.

No fim das contas, sob o ponto de vista cristão, apesar de que “só Deus poderá julgá-lo”, pregar uma coisa e fazer o contrário, apesar das consequências, é tido como hipocrisia, pois para pregar deve-se prezar pela autoridade moral de fazê-lo. Nesse quesito, creio que Rodolfo continua errado e deveria abandonar os royalties que recebe por direitos autorais. Ficaria muito feio o cristianismo adotar um utilitarismo por conveniência.

sexta-feira, 7 de março de 2014

As quatro citações mais populares da Filosofia

Existem algumas citações do campo da filosofia que se tornaram pop's; famosas mesmo. É bom que a filosofia se torne famosa, entretanto, é ruim quando queremos entender a filosofia por frases soltas, na base do "ouvi falar". Pior ainda é quando citamos essas frases sem entendê-las. Aqui vão as quatro frases mais famosas, e talvez mais mal interpretadas, da filosofia, seguidas de uma tentativa de esclarecimento e contextualização para que não fiquem tão soltas por aí:

“A religião é o ópio do povo” K. Marx – Essa citação de Marx, não raro, é interpretada de forma equivocada. Muitos a entendem com o sentido de que a religião manipula e ilude o povo, como a ilusão criada por se fumar ópio, sendo a causa de muitos males. Entretanto, essa não é uma interpretação coerente nem no contexto em que a frase foi posta, nem segundo o próprio pensamento de Marx. Para o Marxismo, tendo como base o materialismo histórico, não é a consciência que determina aquilo que é material, mas sim o que é material que determina a consciência. Aqui, o verbo determinar não deve ser entendido de forma rígida, determinista, afinal, apesar da predominância do material sobre a consciência, Marx concebe a relação entre o material e as ideias como dialética. Sendo assim, a religião, tida como ópio, faz parte do campo da consciência e não do campo material. Não é ela que cria a ilusão que determina a miséria do povo; ela, na realidade, é o resultado das miseráveis condições materiais pelas quais o povo sofre. Marx, aqui, talvez apontasse que a religião é antes uma consequência da exploração do trabalhador, do que sua causa. Oprimido materialmente, o povo busca dar conta de seu sofrimento através do alívio da consciência, com o ópio, ou seja, com a religião. Aqui vai a frase com um pouco mais de contexto:  “A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

“Só sei que nada sei” Sócrates – O problema que existe na interpretação dessa frase atribuída a Sócrates (ela surge pelos escritos de Platão e não se sabe se Sócrates fez tal afirmação ipsis litteris), na verdade, está nas relações que acabamos estabelecendo entre ela e outras coisas que não eram cabíveis na antiga Grécia. A interpretação equivocada é a de que Sócrates estaria dando uma demonstração de humildade. Ora, a noção de humildade é cristã, não existia como tal na antiga Grécia. Quando Sócrates coloca que "só sabia que nada sabia" (ou "que não sabia nada sobre o que perguntava ao atenienses"), isso foi antes uma afirmação de inteligência. Afinal, ele mesmo diz ter confirmado os dizeres do Oráculo de Delfos. O Oráculo disse que Sócrates era o mais sábio. Sócrates não acreditou e saiu pela Grécia questionado os que eram conhecidos como muito sábios. Descobriu que os "sábios" afirmavam saber o que não sabiam, já ele, Sócrates, ao menos "sabia que não sabia". Portanto, era mesmo mais sábio que todos os "sábios" da Grécia. Confirmou os dizeres do Oráculo! Sendo assim, a mosca de Atenas estaria reafirmando que como filósofo ele só poderia ser amante da sabedoria, mas sábio mesmo, só os deuses, pois somente eles podiam saber das coisas que Sócrates perguntava na praça (justiça, piedade, coragem), ficando para o filósofo uma única certeza: a de que nada sabia sobre essas coisas.

Deus está morto” F. Nietzsche – Essa talvez seja a frase mais mal interpretada de toda a filosofia. Isso porque ela, assim como a frase de Marx, cita algo que faz parte do campo da religião. Entretanto, de nada adianta querer entender frases soltas. Nietzsche era um grande crítico da metafísica e consequentemente da metafísica de Platão. Com essa frase, queria mais constatar que as justificativas e fundamentos que damos para nossa existência em um “além-mundo” estavam historicamente mortas, do que fazer propaganda do ateísmo. Nietzsche estava atestando, no final das contas, que a metafísica (Deus) morreu. E quem foi o assassino? O positivismo, com o ideal científico de conhecimento e, portanto, material, empírico. O Positivismo afastou Deus do conhecimento. Depois dele, não poderíamos mais julgar nosso mundo segundo preceitos metafísicos e, no final das contas, sabendo disso, todos nós “matamos Deus”. “Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós!

“O inferno são os outros” J. P. Sartre – Essa frase, sozinha, sem o devido contexto da filosofia Sartriana, dá brecha para se pensar que seria melhor se os “outros” não existissem para atrapalhar a mim, o mundo, ou qualquer coisa do tipo. Entretanto, isso não se encaixa na filosofia de Sartre. Ora, o existencialismo é aquela filosofia em que a existência precede a essência. Em outras palavras, antes existimos do que somos e nossa essência não é pré-concebida. A essência de cada um de nós é resultada da nossa existência, das nossas escolhas durante a vida. Ou seja, eu, como ser humano, sou as escolhas que tomo durante a minha vida e, no fim das contas, é isso que me difere das outras coisas: a liberdade. “O ser humano está condenado a liberdade”, segundo Sartre, porque não pode escapar de sua responsabilidade de decidir. Ao tomar uma decisão, o ser humano deve sofrer a angústia da escolha e ser responsável por si mesmo e por toda a humanidade. Se não for assim, não é verdadeiramente livre. E como o ser humano pode ter acesso e experimentar a sua própria essência? A partir do outro, da convivência. O inferno é esse. Além de estar condenado à liberdade, tendo que fazer escolhas sob minha responsabilidade, os outros me impedem de fazer tudo que quero, entretanto, é somente através dos outros que posso vislumbrar minha essência; somente através do “inferno” da convivência e da condenação à liberdade que os seres humanos podem existir e, portanto, serem.

Gosto é questão de educação

Dizem por aí que "gosto não se discute". Não concordo muito com esse ditado, pois gosto é uma coisa que tanto é muita discutida, como também é discutível. Na filosofia, por exemplo, um amigo nos lembra: "gosto é o que mais se discute, a disciplina de estética é sobre isso!".  

Por anos toquei guitarra, até que um dia, por necessidade, comecei a estudar o contra-baixo. Nunca tinha prestado muita atenção no papel do baixo na música. Foi o estudo e a pratica que me fizeram educar o meu ouvido para prestar atenção em cada nota e em cada cadência daquele grave instrumento. 

Foi então que comecei a entender a função rítmica e de harmonia do baixo. Não virei um bom baixista, mas agora eu aprecio o contra-baixo muito mais que antes ao ouvir uma música. O mesmo me ocorreu com relação ás cores e á moda: eu comecei a treinar meu olhar como treinei meu ouvido. Não sou nenhum especialista, mas já adquiri uma melhor capacidade de apreciação dessas coisas.

Nesse contexto, faz todo sentido falar sobre o gosto como questão de educação. Não de uma dogmatização do gosto, mas sim de capacitação estética. É difícil saber apreciar um vinho, curtir jazz, ou fruir um quadro sem o treino que é não apenas intelectual, mas dos sentidos. A apreciação estética é aprendida.

Muitos reclamam que o brasileiro só gosta de "sertanejo" ou "funk", e que essas são coisas de mau gosto. Não vejo dessa forma. Creio que esses estilos musicais também são expressão de uma cultura. É certo que muitos são ritmos comerciais justamente porque simples, repetitivos, exigindo pouco treino do ouvido e, portanto, são digeridos muito facilmente. Além disso são dançantes, o que é muito bom. O problema não é gostar disso, o problema é não ter a capacidade de apreciar nada um pouco mais complexo em termos de rítmica, harmonia ou poesia. Em suma, é não conseguir apreciar nada diferente. 

Isso se resolve somente com educação, mas num país de escola destruída o gosto fica arruinado não porque curte o sertanejo comercial, mas sim porque não consegue curtir nada para além disso, não consegue ampliar a sua própria apreciação estética. Quando isso acontece, grande parte da cultura se perde pois não é apreciada; somente o simples e o simplório sobrevivem. Além disso, viramos pessoas tristes, monotemáticas, pois nossa experiência e prazer ficam muito limitados e viciados.




Você acredita em Deus? "Agnóstico" não é resposta

Não faz muitos anos que uma parcela significativa de pessoas que conheço começaram a responder às perguntas como “Você acredita em Deus?” da seguinte maneira: "não tenho religião, sou agnóstico". Com isso, se queria dizer duas coisas: ou que acredito em Deus mas não sigo uma doutrina, ou que sou incapaz de dizer se Deus existe ou não. Essas duas formas de se utilizar do termo agnóstico são mais ou menos corretas. Digo isso porque elas podem ser  de uma pessoa cuja posição é o agnosticismo, todavia, a primeira não é uma característica necessária do agnóstico, e a segunda nada diz sobre a posição teológica do questionado. Explico melhor adiante.

Em busca de uma exposição a respeito da relação entre crença e ateísmo (O ateísmo é uma crença?), encontrei uma série de bons trabalhos, incluindo um ótimo texto, bem argumentado, que me mostrou não só que o ateísmo é antes uma não-crença que uma crença, como também circunscreve uma definição de ateísmo relacionado à crença. Farei um resumo aqui da maneira mais simples possível.

Desde Platão, a noção de conhecimento ficou conhecida como uma “crença verdadeira e justificada”. Isso significa que para dizermos que acreditamos numa coisa, basta tendermos a aceitar aquela coisa como verdade; porém, para dizer que sabemos algo, ou seja, que conhecemos, essa nossa crença deve ser justificada. Com o advento da lógica aristotélica, foi possível relacionar as crenças não com coisas, mas sim com proposições (pensamento expresso na forma declarativa, afirmações na forma de sujeito e predicado).

Sendo assim, se eu digo “A chuva é fria”, temos aí uma proposição, algo que declara antes um pensamento meu que a realidade em si da chuva. A crença é “estado mental disposicional, que tem como conteúdo uma proposição, verdadeira ou falsa”. Ou seja, além de conter uma proposição (uma expressão declarativa de um pensamento) a crença é disposicional (uma disposição a aceitar como verdade uma proposição).

Nesse contexto, o ateísmo, no fim das contas, se mostra antes uma rejeição da proposição “Deus existe”, do que a disposição a aceitar como verdade (crença) a proposição “Deus não existe”. Em outras palavras, o que define o ateísmo é simplesmente a não crença em divindades, sendo que isso não necessariamente implica na crença na não existência de divindades. Isso é um tanto complicado de se entender a principio. A divisão entre ateus fracos e fortes, criada e utilizada por alguns autores ateístas, nos ajuda a esclarecer a questão.

O ateu forte seria aquele que além de rejeitar a proposição “Deus existe”, aceita a proposição “Deus não existe”. Ou seja, esse é um ateu que crê na não existência de Deus, justificando tal crença através da falta de evidências, por exemplo. Para ele, a ausência de evidências é a evidência da ausência. O ateu forte parece ser minoria entre os ateus. Para ser ateu, basta ser um ateu fraco.

O ateu fraco é aquele que simplesmente não acredita na existência de Deus, tem uma não-crença e rejeita a proposição “Deus existe”; porém, se colocarmos perante ele a proposição “Deus não existe”, ele também irá rejeitá-la. Alguns ficarão confusos aqui. Como ele pode rejeitar que Deus existe e Deus não existe? Rejeitar uma não implica em aceitar a outra? Não. Isso porque, novamente, a crença se relaciona com proposições e não com coisas.

Se alguém diz para mim “Seu primo é gordo” e eu rejeito, e esse mesmo alguém diz “Então, seu primo é magro”, eu posso rejeitar também porque, afinal de contas, eu posso não conhecer meu primo. Isso não significa que meu primo não existe. Ele pode existir e ser gordo, mas como não o conheço, nada posso afirmar de conhecimento sobre ele.

Para ser ateu, então, basta rejeitar a proposição “Deus existe” (pode-se falar também em rejeitar a existência divindades). Para além disso, caso alguém aceite a proposição “Deus não existe”, esse será um ateu forte, mas caso rejeite qualquer outra proposição sobre Deus, será um ateu fraco. Portanto, o ateu fraco é aquele que nada afirma sobre Deus, enquanto o ateu forte crê na não existência de Deus.

Mas, o ateu fraco não é o agnóstico? Não necessariamente. O que difere aqui é o referencial da posição. Teísta e ateísta são posições teológicas, enquanto o agnosticismo é uma posição epistemológica (do conhecimento). Ou seja, teologicamente falando, ou você é ateu ou não é. Não existe um meio termo aí chamado “agnóstico”.

O agnóstico, do ponto de vista do conhecimento, crê que a razão é incapaz de conhecer as divindades. Isso torna a resposta “agnóstico” insuficiente para a pergunta “Você acredita em Deus?”, pois o agnóstico pode tanto ser teísta, como um ateu fraco. Um agnóstico crê que nossa razão é incapaz de conhecer Deus, por isso, ele pode tanto encontrar motivos para crer em Deus pela fé (teísta), como pode, crendo que nossa razão não pode conhecer Deus, nada afirmar sobre ele, rejeitando qualquer proposição a respeito de Deus e achando a fé insuficiente para sustentar sua crença (ateu fraco).

Trocando em miúdos, eu diria que se você não está nem aí para Deus e sua existência, como não está nem aí para o Papai Noel, sem abrir mão de que se um dia ele aparecer você o aceite, você é ateu. Ser agnóstico aqui apenas significa que essa ideia de Deus fica em suspeita. Pode até ser que ele exista, mas pode ser também que não seja possível conhecê-lo e, portanto, como creio no que posso conhecer, rejeito a proposição "Deus existe". Porém, pode-se ser um agnóstico que crê em Deus: isso significa que eu dispensaria a Razão como forma de conhecer Deus, mas Deus poderia ser conhecido pela Fé, como Pascal diria, por exemplo.


PS: Há quem diga que o conhecimento pela Fé é gnosticismo, sendo o agnosticismo caracterizado pela incerteza, ainda havendo a fé. Porém, defendo aqui que o agnosticismo é uma posição suspensão do conhecimento pela Razão.

sábado, 1 de março de 2014

Rafinha Bastos e APAE: o Hotel Mercure já ensinou como se faz



Não é necessário criminalizar a babaquice, mas a sociedade pode sim endossar que a babaquice é o que é: babaca. Penso que isso é culturalmente útil.

A APAE perdeu a ação judicial contra o humorista Rafinha Bastos. Pronto, é hora de todos nós que gostamos de por a boca no trombone a respeito da sociedade nos posicionarmos. A minha posição a respeito de piadas e processos eu deixo bem clara no começo desse texto: piada de mau gosto é piada de mau gosto, não crime.
Todavia, penso que há sim utilidade em se dizer quando uma piada é de mau gosto num determinado contexto. É uma questão pedagógica para a civilidade, ainda mais quando temos alguns humoristas que acham que só é possível se fazer rir quando se goza justamente daqueles que já sofrem bastante no dia-a-dia.


Sobre a APAE e Rafinha Bastos, vendo vídeos e lendo textos sobre o caso por aí, há quem diga que a APAE exagerou pois a piada não denigre a instituição. Concordo que a APAE exagerou quando judicializou a questão, todavia, dizer que a piada não causa nenhum prejuizo à APAE como instituição é besteira. Creio que, para quem diz isso, um aspecto da piada feita pelo humorista em seu DVD "A Arte do Insulto" está passando em branco: a piada depende da relação que se faz entre APAE e a palavra "retardado".


Ora, quem conhece a APAE e as famílias de pessoas com deficiência mental sabe que uma das maiores lutas, inclusive da instituição, é pela inclusão. Isso passa por um combate contra a palavra "retardado", que é de sentido altamente pejorativo e marginalizante. A palavra "queer" já foi assim para os gays, mas com mobilização eles conseguiram dar a volta por cima. Sendo assim, essa piada do Rafinha reforça sim algo de muito ruim quando usa dessa palavra.


Nesse contexto, penso que o que a APAE poderia fazer não é processar. Creio que isso também vale para diversas outras causas que tem de lidar com humoristas do tipo "politicamente incorreto" (a.k.a "babaca"). Processar logo de cara é uma atitude ruim porque potencialmente criminaliza piadas e é antipática. Ela traz consigo o risco da censura amparada legalmente, assim como uma posição institucional que se mostra fechada para o diálogo. 


O que se pode fazer, ao invés disso, é se usar da comunicação social numa ação de relações públicas. Pega-se uma dose do que os gays fizeram com a palavra "queer", por exemplo, e junta-se isso numa boa ação de comunicação institucional.


Isso não é nenhuma novidade no ramo da comunicação e nem mesmo para o Rafinha. Lembram da cacetada que o Hotel Mercure deu no humorista pelo Twitter no ano passado? Esse é o tipo de ação de comunicação institucional que, creio eu, é muito útil nesses casos. Afinal, não se processa e, além disso, a organização se retroalimenta da piada em termos de imagem e opinião pública sem qualquer prejuízo: "A trip to Belize".

De fato, o
vídeo feito por pessoas com deficiência para o Rafinha Bastos, e que foi bem compartilhado nas redes sociais, já foi um avanço nesse sentido comunicacional. Todavia, creio que as instituições em si poderiam avançar mais nesse sentido que estou propondo de se posicionarem publicamente mais abertas ao diálogo e de maneira mais "esportiva", com fair play, se utilizando da comunicação institucional de maneira inteligente e estratégica. O segredo é tornar casos como esse antes questão de Relações Públicas do que de advogados.

Sendo assim, a APAE poderia fazer uma carta aberta ao Rafinha se utilizando do humor, por exemplo, dando um jeito de subverter essa palavra "retardado". É uma sugestão. O importante é que a ação fosse uma resposta institucional "levando na esportiva", mas ao mesmo tempo ácida, pois isso seria um tapa de luvas na cara do Rafinha e muito útil para a causa e imagem da APAE.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Django Livre e o "oprimido conservador"

Ontem mesmo, presenciando mais um daqueles intermináveis, porém raramente frutíferos, debates sobre cotas sociais e raciais foi que ouvi, mais uma vez, uma afirmação que me incomoda sobremaneira: “Sou negro, sou pobre, e nunca precisei de cota. Me esforcei como ninguém, passei umas poucas e boas na escola pública por isso, mas venci. Então, pra quê cota?”

Hoje, leitores, não farei aqui propriamente uma defesa das cotas. Deixarei isso para um texto futuro, no qual pretendo apresentar um cardápio de argumentos em prol da cota racial. Escreverei o que considero os dois principais raciocínios se tratando de justiça e deixarei à vontade todos aqueles que quiserem contestar essas linhas de defesa.

No presente texto, porém, tentarei responder por que diabos alguém que é negro e pobre, que admite ter vencido sobre uma carga de esforço muito maior do que qualquer branco de classe média a seu lado, pensa que todos os outros negros e pobres não precisam de coisas como cotas. Por que ele insurge contra qualquer investida que mude o mundo de forma que todos aqueles que partem da mesma condição que ele partiu (negro e pobre) fiquem em situação mais igualitária?

Assim, procurarei aqui, como no meu texto sobre a “psicologia da cantada de rua”, traçar uma potencial narrativa psicológica desses indivíduos que, mesmo reconhecendo a injustiça, querem conservar a sociedade injusta, pois, se eles não precisaram de uma sociedade nova, então ninguém precisa. O que se passa no âmago desse “oprimido conservador”?

A melhor resposta que posso dar para essa pergunta, na verdade, foi me dada pelo meu amigo, o Filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., em dois textos: “Django: um conto alemão, um drama grego” e “A Frenologia do Personagem de Samuel L. Jackson”¹. Através desses dois textos, creio que podemos ter uma resposta interessante para a pergunta acima, pois a interpretação que Ghiraldelli fez do personagem Stephen, do filme Django Livre, é a própria narrativa psicológica desse que estou chamando de “oprimido conservador”.

Para todos aqueles que já assistiram Django Livre, Stephen é o personagem interpretado por Samuel L. Jackson, o irreverente negro da fazenda Candyland. Quando Stephen vê Django pela primeira vez, entrando a cavalo na fazenda, a cara que ele faz (essa da imagem a cima) já deveria ter rendido um Oscar para Samuel L. Jackson. A presença de Django mais que incomoda Stephen. Na verdade, essa presença o ameaça. Mas, por quê? Por que Django incomoda tanto assim Stephen?

Ora, vemos no filme que Stephen foi um negro que, apesar dos pesares, venceu na Casa Grande. Ele é um dos “negros excepcionais”, o “um em dez mil”, como diz o fazendeiro Monsiuer Candie. Stephen manda e desmanda em Candyland. Na primeira cena em que aparece, está assinando um recibo para Candie e, mais tarde, chamará o fazendeiro para uma conversa em nível de igualdade na biblioteca. Somente um “negro excepcional” fica numa posição dessas no mundo escravocrata dos brancos.

Todavia, o preço que Stephen pagou para conquistar essa posição foi muito alto. Além de toda aquela babação de ovo, Stephen se voltou não só contra os seus, os outros negros escravos, como também se voltou contra si mesmo. “Um comerciante de negros que é negro. O que é mais sujo que isso?”, Django questiona. Pois bem, Stephen se sujou nesse nível, afinal, ele não comercia negros, mas virou o senhor dos negros em Candyland. Esse foi todo o sacrifício e esforço que Stephen teve de fazer para vencer naquele mundo, o que não é pouco.

Entretanto, quando Django aparece a cavalo na frente de Stephen, ele, o negro a cavalo, é o anúncio de um novo mundo que está chegando. Sendo assim, o mundo em que Stephen venceu, aquele mundo escravocrata branco no qual ele se sacrificou tremendamente para subir, traindo os seus e a si mesmo, estava ameaçado pela presença de Django. A mensagem que o negro a cavalo passou a Stephen foi: todo esse sacrifício que você fez, toda essa babação de ovo e traição, vai perder o sentido nesse novo mundo. No novo mundo, o negro anda a cavalo sem precisar pagar um preço tão caro. Ou ainda: todo o sacrifício e esforço que você fez para vencer no mundo dos brancos, diante desse novo mundo anunciado, foram em vão.

Isso Stephen não consegue engolir. É difícil demais engolir que toda dor que ele teve de enfrentar, e toda sujeira que teve de fazer, tornando a si mesmo um monstro para vencer no mundo dos brancos é algo que no novo mundo não vale de nada. O que Stephen faz, então? Se volta contra Django, a personificação do novo mundo, de maneira a tentar  conservar o velho mundo, o mundo escravocrata branco do jeitinho que era quando ele, Stephen, venceu. Pois só assim seu sacrifício faz sentido. Stephen é o “oprimido conservador”.

Creio eu que a narrativa psicológica de Stephen vale para muitos da classe dos oprimidos, negros e pobres, que insistem em dizer que, porque venceram no velho mundo, ninguém precisa dos mecanismos do novo mundo. É que essa gente se esforçou tanto, mas tanto, para vencer nesse mundo, algumas até no nível monstruoso de Stephen, e elas mesmo reconhecem isso, que quando coisas como cotas surgem na frente delas, é como Django a cavalo: o anúncio de um novo mundo; um mundo onde negros e pobres como elas não precisarão pagar um preço tão caro assim para vencer.

Sendo assim, a injustiça para elas não consiste em outros negros e pobres terem que se esforçar muito mais que brancos de classe média nesse mundo. A injustiça para elas é, no novo mundo anunciado, negros e pobres não terem de se esforçar o tanto quanto elas tiveram de se esforçar no mundo presente para vencerem. Isso as ameaça diretamente na alma.


Falando nisso, lá vem ele, Django a cavalo... 



1 - O título desse texto, "A frenologia do personagem de Samuel L. Jackson", ele agradece a mim e diz que "usou sem licença". Pois agora eu uso o texto dele "sem licença" e agradeço também.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A psicologia da "cantada de rua"

Já é relativo consenso entre as mulheres. Não importa se ela é feminista declarada ou não: a “cantada de rua” é uma coisa que, se não é violenta, ao menos é de muito mau gosto. Nesse caso, meus amigos homens, não adianta ficar querendo espernear, debater, querer fazer apologia da "cantada", porque a verdade é que elas, as mulheres, não gostam de “cantada de rua” e ponto final. O caminho inteligente aqui não é ficar esperneando, mas fazer um esforço compreensivo. 


Ontem li um texto intitulado “O que os homens não entendem sobre cantadas”. Nele, a autora buscava inserir o leitor na psicologia feminina diante da “cantada de rua”, quase num esforço empático, dizendo que o que precisa ser entendido é que as mulheres não só tem nojo desse tipo de cantada, como também tem medo: medo do stalker, medo do estuprador e etc. É um medo legítimo, dado o índice de violência contra a mulher e o que elas passam no dia a dia.

Pois bem, aqui eu gostaria de adicionar uma perspectiva. Buscar responder o por que da “cantada de rua”, mesmo não funcionando como cantada, é insistentemente utilizada. Nesse esforço, tentarei dizer também o que homens, e mesmo muitas mulheres, não entendem sobre “cantadas de rua”, mas do ponto de vista da psicologia masculina.

Primeiramente, acho que é preciso fazer uma distinção, pois a “cantada de rua” já é um gênero específico; é diferente de “elogio”, ou mesmo de “chegar em mulher”. A “cantada de rua” é um uso da linguagem específico que todos conhecemos: trata-se da expressão verbal, ou mesmo corporal, que se faz a uma mulher desconhecida, em público, com o intento de avalia-la sexualmente.Mas, esse conceito é muito frio e pode ser relativizado de acordo com o contexto. Eu já diria que a "cantada de rua" é um uso da linguagem que possui essas características mas que serve, como veremos mais tarde, para outros propósitos que não o flerte.

Alguns exemplos práticos definem melhor a "cantada de rua": por exemplo, quando o homem grita, no meio da rua, para a mulher “ô delícia!”, ou mesmo faz gestos obscenos para ela. Esse uso da linguagem já se diferencia do “chegar em mulher”, pois isso pode ser feito respeitosamente (ou mesmo de uma forma “desrespeitosa”, mas que no fundo é respeitosa); assim como se diferencia do “elogio”, afinal, na prática, o que as mulheres estão dizendo é que ele, o uso, não é tomado como elogio, por mais que o conteúdo semântico possa parecer elogioso. É um uso da linguagem que não as agrada e, portanto, de que vale um “elogio” que não agrada?

Eu venho me tornando um cara meio pragmático de uns anos para cá. Sendo assim, a performance de comportamentos, ou métodos, que parecem apontar para um resultado, mas que sempre falham, me causa estranhamento. Desde a minha adolescência, a “cantada de rua” me causa um estranhamento porque, claramente, nenhum dos meus amigos que ficava buzinando, ou mesmo gritando “ô gostosa”, para mulheres na rua ganhou um sorriso sequer em retribuição.

Certo dia, andando de carro com alguns deles, há uns 10 anos atrás, aconteceu deles resolverem ficar buzinando e mexendo com uma moça bonita na rua. Riam a beça. Sinceramente, aquilo nunca havia me incomodado. Todavia, naquele fatídico dia, olhando para aquela moça que simplesmente resolveu ignorá-los, fui tomado por um estranhamento.

Logo de cara reparei que, obviamente, a moça não estava gostando daquilo. Isso por si só já tornaria o comportamento injustificável. Mas, o que me incomodou mesmo foi: se não estava gostando, e o intuito da “cantada” é “cantar”, que diabos está acontecendo? Por que se faz isso se nunca funciona? Na hora, questionei meus amigos sobre isso. Eles me mandaram ir à merda e a história acabou por aí. Entretanto, o problema permaneceu... 

Afinal, se ela, a “cantada de rua”, nunca funciona, porque os homens continuam a usá-la teimosamente? Se a “cantada de rua” falha insistentemente no que seria seu propósito, porque muitos homens insistem em usá-la? Acho que para responder a essa questão é preciso entrar um pouco na psicologia do ato e buscar compreendê-lo.

A tese-resposta que mais gosto a esse respeito tem a ver com a “demonstração de poder”. A “cantada de rua” nunca funciona em seu intuito de “cantar” a mulher, mas ela funciona num outro sentido: resolver algo incômodo no âmago do homem e lhe dar a sensação de que tem o poder. Ficou muito abstrato? Dou exemplo.

Está lá o homem, indo muito bem na sua vida, se sentindo forte, feliz e dono de si mesmo. De repente, ele vê uma gata daquelas. Seu corpo inteiro foge de seu próprio controle: ele transpira, treme, seu olhar é puxado por uma força do além e seu pênis mostra que, na verdade, ele nunca esteve no controle. Ele deixa de ser o dono de si mesmo naquele momento e ele sente isso. A mulher, apenas pela presença dela, ameaçou a estabilidade subjetiva dele. Só que ele sabe que não conseguirá conquistar aquela mulher. Ele se vê impotente.

Nesse momento, ele precisa restabelecer a ordem dentro de si mesmo, precisa reorganizar o caos subjetivo de maneira que ele mesmo se refaça como sujeito do modo que era antes de ver aquela mulher. Como se faz isso? Como muitas espécies de animais fazem: subjugando aquele que, mesmo sem querer, nos subjugou.

Sendo assim, agora ele sente que precisa subjuga-la, pois ela lhe ameaçou em seu poder. Caso não vivêssemos em relações civilizadas, mas no reino animal, provavelmente ele a tomaria a força logo de cara. Todavia, ele não pode fazer isso a princípio. Por isso, mais uma vez ele é tomado pela impotência. Aquele homem “feliz e resolvido”, diante apenas da presença de uma mulher, se tornou o mais impotente e diminuto dos homens. Aliás, ele foi lembrado de sua impotência. Que lhe resta fazer? Tentar outro tipo de dominação: a “cantada de rua”. Então, ele assovia, grita, faz gestos obscenos, chama os amigos para rir junto, tudo isso na tentativa de não só “demonstrar poder” para ela e para os outros que estão com ele, mas para demonstrar para si mesmo que tem o poder, que não é um impotente.

É por isso que a “cantada de rua” insiste em aparecer, mesmo não funcionando como cantada. É porque ela é um mecanismo que tenta dar alguma resolução para a impotência, para o caos subjetivo, que a presença da mulher causa no homem, principalmente o homem impotente. Não estou dando aqui “justificativas naturais” para a “cantada de rua”; estou narrando a sua psicologia. A “cantada de rua” é, na verdade, o corolário da impotência. Nesse contexto, não é cantada, não é flerte, mas sim assédio, demonstração de força...


Mulheres lindas, estando na rua e se fazendo visíveis, estão sempre lembrando a homens impotentes, de “pinto pequeno”, “mal sucedidos”, ou qualquer outra coisa que os faça sentir impotentes, que eles são impotentes. Para esse tipo de homem, nada mais ameaçador que uma mulher linda que fique lembrando-o o quanto ele é fraco e diminuto. Sendo a ameaça e o medo primos da violência, aparece daí o uso da força, da violência física e verbal. Aparece, quase que como um vício violento, a “cantada de rua”.